Compre o que quiser
Houve uma época, pelos idos de 1920, em que os americanos tinham poucas opções em relação a carros. Henry Ford dizia que as pessoas podiam escolher qualquer carro, desde que fosse Ford, preto. O motivo disto era que a tinta na cor preta secava mais rápido e os carros poderiam ser montados mais rapidamente.
No Brasil, somente na década de 30, fábricas estrangeiras, como a Ford e a General Motors, colocaram suas linhas de montagem no país. Porém, foi somente em 1956, durante o governo de Juscelino Kubitschek que as multinacionais automotivas começaram a montar os automóveis. Primeiramente fabricaram caminhões, camionetas, jipes, furgões e, finalmente, um número reduzido de carros de passeio. Com certeza as indecisões eram menores. As opções eram ter ou não ter um carro. Hoje são tantos modelos e marcas. E cada um com seus diferentes conjuntos de recursos, opcionais, que tornam a escolha uma decisão mais complexa, e sempre com o sentimento de que um outro poderia ser mais satisfatório. Mas sempre há a possibilidade da troca, e então podemos fazer opções a qualquer momento, escolhendo conforme os ventos da conveniência e gosto. Graças a Deus pela modernidade e suas vantagens.
Usei aqui os carros como exemplo, mas poderia ser qualquer outra coisa. A verdade é que estamos em um grande mercado, com opções a perder de vista. A modernidade criou e personificou o conjunto de alternativas de produção, negociação e consumo de mercado. Mercado é o conjunto formado pela relação entre concorrente, fornecedor e consumidor para atender, de maneira adequada, às necessidades desse último. É a relação entre a oferta e a procura de produtos e serviços. E nos acostumamos, adaptamos e passamos a fazer parte do mercado, a ponto de compreendermos muito bem quando um apresentador de telejornal nos informa que “o mercado está nervoso”, ou “o mercado não está bem”, e assim por diante. Mas a questão é que de fato assimilamos a idéia de que estamos em um grande mercado, que entre outras coisas possui a característica de nos oferecer diversos produtos, onde escolhemos, conforme nossas conveniências. E então, como fazemos todos os dias, assimilamos a marca do momento, e compramos, desde um item de higiene pessoal, passando pelos eletrodomésticos, meio de transporte, formação profissional, cônjuge, e inclusive, religião, igreja, versão de Bíblia, valores teológicos, pastor, ou seja, escolhemos tudo.
Não deixa de ser muito nosso conjunto de opções. No meio evangélico, por exemplo, supondo que alguém já tenha feito diversas opções que o permitam a chegar até aqui, escolhendo o cristianismo e depois o protestantismo como grande grupo, considerando que tenha deixado de lado aquelas alternativas que ofereçam claras posições doutrinárias que questionem a divindade de Cristo, e o valor de seu sangue, como valores importantes à salvação, chegar-se à ala onde as opções serão entre grupos que consideram atuais ou não o enchimento com o Espírito Santo e seus dons, especialmente os dons de manifestação do Espírito Santo (os nove de 1 Co 12).
Então teremos as opções entre as igrejas com práticas históricas e aqueles com práticas neo-pentecostais. Uma escolha não muito simples, porque suas definições já não são tão claras como há alguns anos. Há casos em que em uma mesma denominação ser encontrado um leque de opções que variam de modo a mais parecer um mostruário de vendedor de cosméticos: tem de tudo. O negócio é agradar ao freguês. Há os que ensinam e os que pouco ensinam; há os da prosperidade material e os do tipo “negar a si mesmo”; há os G-12 e há avessos ao G-12; há os do louvor animado, com dançarinos e tudo mais e há os de músicas mais contemplativas, com mais tempo para a pregação da Palavra; há os que ensinam a Bíblia no domingo pela manhã e incentivam a prática do “dia do Senhor” e há os que nem falam mais nisso, e quando falam é apenas retórica; há inclusive os que já não ensinam mais a Bíblia e nem possuem reuniões de oração em suas igrejas, e há os que ainda insistem nesta prática. Temos também aqueles movidos a campanhas para objetivos temporais, como casamento, curas, realizações terrenas, e há os que pensam que temos coisas mais importantes a buscar, como o Reino de Deus e a sua justiça.
Tem para todos os gostos. E vamos nos aprofundando no conceito de mercado, onde cada um escolhe o produto que quer, a ponto de ser facilmente distinguível hoje práticas como o pluralismo e o pragmatismo. O primeiro identifica a aceitação de uma diversidade de concepções como válidas. É tomarmos como correta a afirmativa que diz que “todos os caminhos levam a Deus”. Assim admitimos tudo como válido. Ao mesmo tempo em que concordamos que é importante ao que deseja seguir a Cristo o negar-se a si mesmo, o tomar a sua cruz e seguir ao mestre, também é correto a ênfase dada à satisfação dos anseios terrenos, afinal “Deus quer que comamos o melhor desta terra”. Então vale tudo, desde que fale de Deus. O segundo, pragmatismo religioso, diz respeito ao entendimento de que uma prática religiosa só é boa se nos traz resultados de curto prazo. Se vou me sentir bem no curto prazo, então é bom. Se a benção virá logo, então vou investir nisso, inclusive ofertando e entregando o dízimo. Se uma campanha de 7 ou 21 ou 40 dias me trarão determinada benção, então isto funciona, e é o que quero. Algo prático, que funcione.
Quer me parecer que o Apóstolo Paulo, pelo Espírito Santo, já contemplava este mercado religioso. Ele disse a Timóteo que “virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo grande desejo de ouvir coisas agradáveis, ajuntarão para si mestres segundo os seus próprios desejos, e não só desviarão os ouvidos da verdade, mas se voltarão às fábulas” (2 Tm 4.3,4). Um tempo em que nossas escolhas serão feitas para atender a nós, nosso senso de satisfação, nosso ego, e jamais, ou pelo menos não como prioridade, a vontade de Deus.
Aliás, esse negócio de vontade de Deus também é um conceito questionável, afinal segundo alguns a vontade de Deus é que nós tenhamos satisfeitas estas nossas necessidades. Na verdade uma das questões importantes é se a vontade de Deus não está a nosso serviço, pois é assim que muitos se comportam: com um grande gênio, denominado Deus, para atender ao seu ego. Só falta nos chamar de Amo.
Em Mateus há um texto muito complicado. Confesso que gostaria de fazer uma releitura dele. Aliás, diga-se de passagem, esta idéia de releitura também é interessante. E tem muita oferta de releituras no mercado evangélico. Mas o texto que me preocupa é Mt 7. 21: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” Jesus aqui apela para um valor maior: a vontade do Pai. Isto parece se confrontar com qualquer outra vontade, inclusive a nossa. A salvo as diferentes releituras que possam ser feitas, e com certeza elas existem, estas palavras de Cristo apenas nos deixam duas opções: servir a Deus conforme a vontade do Pai, ou não servir a Deus. Está dentro ou está fora. Não há meio termo. Não há jeitinho. Não há flexibilização.
Entendo até a que Palavra de Deus é de fato muito dura. Jesus é muito rigoroso em suas colocações. Na seqüência deste texto registrado por Mateus, ele é abordado por algumas boas almas, que profetizaram em seu nome, em seu nome expulsaram demônios e fizeram muitos milagres. Mas só porque isto não era feito em concordância com a vontade do Pai, ele afirma que lhes dirá claramente: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade.” Muito duro não é? Corremos o risco de dar razão para aqueles que montaram um Cristo de acordo com suas próprias convicções, pois o Cristo que nos é apresentado nos evangelhos é muito rigoroso e ofende nossa idéia de um deus amoroso, compreensivo, que nos aceita como somos e nos salva por sua imensa graça e misericórdia, sem que precisemos nos submeter a sua vontade. Afinal, para muitos, hoje, Jesus realmente é o Salvador. Esse negócio de ser também Senhor não é importante.
Só nos lembremos do que Paulo diz: “Porque está escrito: Por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobrará todo joelho, e toda língua louvará a Deus. Assim, pois, cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus” (Rm 14.11,12).
Vários ensinos de Cristo nos fazem lembrar do tempo de prestação de contas e das opções de então: “Pois assim como o joio é colhido e queimado no fogo, assim será no fim do mundo. Mandará o Filho do homem os seus anjos, e eles ajuntarão do seu reino todos os que servem de tropeço, e os que praticam a iniqüidade, e lançá-los-ão na fornalha de fogo; ali haverá choro e ranger de dentes” (Mt 13.40-42).
“Quando, pois vier o Filho do homem na sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; e diante dele serão reunidas todas as nações; e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos” (Mt 25.31-34,41).
Isaías já pregava: “vinde e comprai sem preço” (Is 55.1). Talvez esse seja um problema, pensar que compramos sem preço, no sentido absoluto, pois de alguma forma pagaremos, ou seja, assumiremos as conseqüências de nossas escolhas.
Por Samuel Alves